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Chez Bocuse não tinha espaço para os fracos

O chef e professor Laurent Suaudeau, que trabalhou com Bocuse por nove anos e veio ao País indicado por ele, escreveu uma carta para seu mestre

  24 janeiro 2018 | 20:05por Laurent Suaudeau*

Monsieur Paul,

 Ainda me lembro do dia em que assumi minhas funções na cozinha de Collonges au Mont d’Or numa manhã de março de 1977. Podia-se sentir uma energia bem militar na cozinha nesta manhã. Comecei a trabalhar sob as ordens de um chef de partie (de praça), um tanto bizarro, e entendi rapidamente que chez Bocuse não tinha espaço para os fracos.

Ficou com água na boca?

De repente, a porta que dava para o jardim se abriu fazendo muito barulho, eu senti uma rajada de vento nas minhas costas e uma voz rouca gritou: “Bom dia, gones” (“rapazes” em uma expressão de Lyon) e todos os cozinheiros responderam “Bom dia Sr. Paul.”

Esta voz era a do senhor Paul Bocuse, que chegava sempre entre 9h e 10h. Todos os cozinheiros largavam o que estavam fazendo para correr em fila e tirar as caixas de mercadoria do caminhão no qual ele chegava do mercado.

 Assim se passaram dois anos e meio nas cozinhas de Collonges au Mont d’Or comandadas por um chef excepcional chamado Roger Jaloux; ele tinha 36 anos e era o chef das cozinhas de Paul Bocuse. Acabou se tornando um amigo.

 

  

 Foto: JF Diório|Estadão

Eu me tornei em pouco tempo chef de partie da brigada de 12 cozinheiros. Era uma grande responsabilidade, lembrando que nesta época Sr. Paul viajava muito e consequentemente existia uma grande curiosidade de mídias e televisões do mundo inteiro. Isso nos obrigava muitas vezes a cozinhar em meio a câmeras, fotógrafos e jornalistas, que invadiam a cozinha nos horários mais inapropriados. E nós tínhamos que estar ao seu dispor. 

Eu vi cozinheiros não aguentarem mais de 24 horas, que recusaram a rotina que ia de 7h da manhã às 15h e das 17h às 23h. Era preciso correr para tirar a mercadoria do caminhão; a comida dos cachorros tinha que estar pronta às 11h; o almoço e o jantar da Sra. Raymonde, esposa do Sr. Paul, da Mamie (mãe do Sr. Paul) e dele mesmo às 11h30 e às 18h30 em ponto. Tudo funcionava como um relógio sem discussão, avental azul para a mise en place, avental branco e toque para o serviço no almoço e no jantar, tudo isso acontecia permeado por um grande silêncio. A gente só ouvia o barulho de panelas e os “sim, chef” e “não, chef”. Uma folga por semana, nunca no mesmo dia, a não ser para os casados.

Um dia à mesa - sendo que somente o chef, o sous-chef e os chefs de partie tinham direito de se sentar nela para almoçar -, contei a Roger Jaloux sobre a vontade que tinha de conhecer o mundo. Sr. Paul me chamou e me ofereceu a possibilidade de ir para Los Angeles no Restaurante Hermitage, considerado o melhor restaurante da Califórnia na época. Feliz com esta proposta, corri para avisar meus pais. Um tempo depois, Sr. Paul me chamou para dizer que eu tinha que esquecer o destino pois o proprietário tinha acabado de falecer. Triste, eu pensei que não partiria nunca mais.

Dois meses depois, eu e um colega fomos chamados no pátio do restaurante, onde nos esperavam Roger Jaloux e Sr. Paul. Neste dia, foi feita a seguinte pergunta: Qual de nós dois devia partir para o Rio e trabalhar no restaurante Saint Honoré Paul Bocuse do Hotel Meridien? O chef Roger Jaloux me apontou com o dedo e disse: “Para nós, Sr. Paul, o Laurent”.

Foi assim que eu vim para o Brasil sem conhecer nada deste país, com um contrato no bolso, que tinha sido assinado na sede do Meridien em Paris, um contrato que o Sr. Paul não gostou e na minha frente, furioso, ligou para o diretor de RH da cadeia hoteleira e disse com firmeza: “Quando Bocuse manda um cara da equipe dele, é porque ele é bom e deve-se pagar por um bom”. Dessa forma, ele aumentou o meu salário com um simples telefonema, que não durou nem dois minutos. Eu faço questão de contar essa anedota, pois é preciso que se saiba que o Sr. Paul era um chef exigente e até duro às vezes; ele podia ser ao mesmo tempo um homem generoso e implacável com aqueles que não eram do seu agrado.

Ele me chamou no pátio do restaurante quando ele soube que meu pai tinha tido um AVC que o deixou completamente paralisado aos 46 anos. Disse-me que se eu quisesse ir embora, eu podia contar com ele, que ele ajudaria a minha mãe. 

Antes de ir ao Rio, eu o acompanhei a Bogotá. Ainda hesitava sobre a vinda para o Brasil, mas ele insistiu: “Você vai ver, é diferente, o céu é azul, as praias são bonitas e as mulheres, maravilhosas”. Realmente, quando cheguei o céu era azul, as praias maravilhosas e as mulheres, mais ainda. Mas eu tinha uma missão a ser cumprida e de preferência o mais rápido possível como sous-chef, pois já existia um chef. A princípio, minha intenção não era ficar muito tempo, eu o avisei por telex. Ele me pediu para ser paciente. Sr. Paul nos visitava quatro vezes por ano e em uma dessas visitas me perguntou se eu não queria assumir o restaurante, me garantindo que ele defenderia a minha posição, e que eu tinha campo livre para executar o trabalho da melhor forma. 

  Foto de março de 2011 com o chef francês Paul Bocuse, do lado de fora do seu restaurante L'Auberge du Pont de Collonges

Foto de março de 2011 com o chef francês Paul Bocuse, do lado de fora do seu restaurante L'Auberge du Pont de Collonges Foto: AP Photo|Laurent Cipriani, File

Em menos de quatro anos, o restaurante foi reconhecido como número 1 do Brasil e como a mesa mais sofisticada da rede Meridien. Quando ele vinha ao País, trazia caixas de brinquedos, livros e roupas que fazia questão de dar de presente para os filhos dos meus cozinheiros. (Eles vinham, na grande maioria, do Nordeste e moravam nas favelas ou subúrbios do Rio). Fomos de Kombi, com o motorista do hotel, visitar as famílias dos meus cozinheiros, com as caixas de presentes, na Rocinha, em Belfort Roxo e no Vidigal.

Em uma dessas vezes, ele pegou um galo e gritou: “Chama todo mundo! Eu vou hipnotizar o galo”. E 20 pessoas o observaram colocar o galo de barriga para cima e imobilizá-lo.

Eu o vi se sentar na rua ao lado de um senhor que fabricava cadeiras de palha e dizer: “Você viu o gesto dele?” Sempre como a sua máquina fotográfica no bolso para registrar uma situação (estávamos longe de saber que um dia existiriam smartphones).

Um dia, na mesa da cozinha, no serviço do almoço, ele me intimou: “Eu vou te mandar para o Japão, para Tokyo”.

- Ok Sr. Paul e eu serei o melhor, respondi.

Neste momento ele se virou e me cortou:

- O melhor do quê seu imbecil? Isso não existe. Faça sempre o seu melhor mas nunca diga que você é ou será o melhor.

Depois ele me propôs ir para Nova York ser chef do restaurante Le Cirque. Eu tinha 27 anos. Acompanhado da Sissi, minha futura esposa, fomos passar uma semana para conhecer o patrão em Nova York e poder discutir os detalhes do meu contrato. Depois seguiríamos para Collonges au Mont d’Or para conversar com o Sr. Paul antes de voltar para o Rio.

Neste dia, um dia glacial do mês de janeiro, ele estava me esperando no restaurante, pediu que eu me sentasse à uma mesa de frente para a cozinha, na qual tinha uma garrafa de Champanhe. Ele a abriu, me serviu um copo e disse: “Você está consciente que eu estou te oferecendo o tapete vermelho  para a sua carreira?”

- Estou, Sr. Paul,  respondi.

E, no entanto, todos sabem o que aconteceu. Eu fiquei no Brasil.

Sr. Paul foi um homem visionário, era consciente de como a imagem pessoal de um cozinheiro poderia ajudar no progresso da cozinha mundial. Sempre buscava o equilíbrio entre o interesse pessoal e o que era do interesse do coletivo, da profissão. 

Ele foi e será para sempre o único chef que entendeu que cada um de nós, onde quer que estejamos, deve valorizar os produtos, nunca deixar de compartilhar os seus conhecimentos com os jovens, com muita humildade e respeito, e que não importa a nacionalidade, a cor e a religião. Eu posso garantir que o Sr. Paul nunca foi xenófobo; sempre defendeu o patrimônio regional e uma cozinha regional, de onde quer que fosse, da França ou de qualquer outro lugar do mundo. O produto, ele dizia sempre, o produto. Os pequenos produtores? Ele sempre os defendeu na sua cozinha e queria que essa fosse uma verdade em todas as cozinhas do mundo. Ele abriu sua cozinha para milhares de estagiários do mundo inteiro; eu sou testemunha. Irlandês, Alemão, Brasileiro, Argentino, Espanhol, Indiano, Americano, Japonês, Inglês, Colombiano, Marroquino, Congolês, em uma época em que ainda não se falava em globalização. 

Tudo isso deve ter o levado a criar o Bocuse d’Or. Ele acabou sendo o primeiro chef a abrir uma escola em seu nome, o Instituto Paul Bocuse.

Tive o privilégio de trabalhar com ele, para ele, e fico feliz de poder compartilhar essas experiências dos anos em que trabalhei para a Maison Bocuse. Eu espero que nessas linhas, os cozinheiros brasileiros entendam o quanto o Sr. Paul foi o ponto de partida da revolução e da evolução da cozinha no mundo - e que o Brasil faz parte desta história. A cozinha representa um universo cultural e cada vez mais os cozinheiros devem valorizar os produtores de suas regiões; uma cozinha expressa e executada com a disciplina do gesto e tendo compromisso com o coletivo.

Certamente, era o que mais entusiasmava o Sr.  Paul, participar e poder ver como cada nação podia fortalecer um diálogo de respeito ao outro e de paz pela cozinha.

Au revoir, M. Paul.

Laurent Suaudeau

*Chef e professor, fundador da Escola da Arte Culinária Laurent Suaudeau