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Mais cozinha, Menos ego

06/11/2015 às 05h00 

Mais cozinha, menos ego

Por Maria da Paz Trefaut | Para o Valor, de São Paulo
 

"Vocês acham que eu sou careta, né?", pergunta Laurent Suaudeau, com uma gargalhada. Sem esperar a resposta, continua, com um ar irônico. "Eu sempre digo: com o uniforme sou uma pessoa, mas, quando tiro o jaleco de cozinheiro, me transformo. Posso ouvir meu rock e não tenho que dar satisfações pra ninguém. Sabe como era meu apelido quando eu trabalhava com o Bocuse [Paul Bocuse, um dos maiores nomes da gastronomia mundial]? 'Passarinho da Noite'. Eu levava todo o mundo pra gandaia! O pessoal das boates de Lyon me conhecia. Mas às 7h30 não tinha conversa, eu estava lá, pronto para o batente. Só uma vez cheguei atrasado ao restaurante."

Já se foram mais de duas horas de conversa. A xícara de café expresso está quase no fim. Bem mais descontraído, ele dá uma mordida no "cantuccini", o biscoitinho com amêndoas e massa dura que costuma encerrar as refeições em casas italianas. Estamos no restaurante Italy, no bairro dos Jardins, em São Paulo.

A tez branca, que além da origem francesa acusa ascendência irlandesa, e o sotaque carregado depois de 35 anos de Brasil fazem de Laurent um imigrante europeu típico, daqueles que encontraram aqui o seu lugar. Pouco depois de chegar, casou-se com a piauiense Dejacy, a Sissi, com quem trabalha e com quem teve dois filhos: a atriz Janaina, de 31 anos, e o piloto Gregory, de 27.

"O que sou hoje? Um cidadão do mundo. Acho que se estivesse nos Estados Unidos ou no Canadá, a minha forma de trabalho seria a mesma. Acredito profundamente no ser humano. Minha bandeira é fazer as coisas acontecerem."

- O que o seduziu no Brasil?

- As pessoas. As que trabalham comigo, as que querem aprender. Não a clientela, que é mais ou menos uniforme em qualquer lugar do mundo. Especialmente aqui, onde meu trabalho vai atingir pessoas de dinheiro.

Entre as múltiplas atividades que desenvolve, o chef tem um negócio principal: a Escola de Arte Culinária, com o propósito de aperfeiçoar profissionais do ramo, e o Instituto Laurent, que firma parcerias com empresas privadas e tem por objetivo a formação de jovens de baixa renda. Recentemente, depois de anos afastado dos restaurantes, entrou como sócio do Grupo Egeu (Italy, General Prime Burguer e Z|San) para atuar como chef-executivo do Kaá.

 
Laurent no Italy: para o chef, que não quis cursar faculdade de hotelaria, o diploma “é um papel” e o que vale é a competência, “seja você um cientista ou um varredor de rua”.

 

"O Brasil ainda é o país do futuro", afirma. "Veja que, apesar de todas as dificuldades que precisamos encarar, não temos um dos maiores problemas do mundo: as diferenças religiosas. Eu brinco dizendo que aqui o cara pode ser muçulmano, judeu ou católico, mas na hora em que a seleção entra em campo veste a camisa amarela. Tenho essa relação com o Brasil, o país que eu amo. E muita gente tem. Você não encontra isso em todo lugar".

Antes de subir para o mezanino do restaurante, onde ocorreu este "À Mesa com o Valor", Laurent passou pela cozinha para cumprimentar o pessoal. Voltou acompanhado por Paulo Barros, chef e um dos proprietários do Italy, hoje seu sócio, que foi seu cozinheiro no restaurante Laurent, que funcionou de 1986 a 2003, primeiro no Rio e, depois, em São Paulo.

"Paulinho, o que você recomenda pra gente?", pergunta, antes de sentar-se. "O peixe grelhado com sauté de grãos e molho de ervas, do menu executivo. Está muito bom. É com pescada amarela, mas para vocês vou fazer com robalo. E para beber? Um vinho?", responde Barros. "Só se for branco, está muito calor", diz Laurent. Em seguida, aceita a sugestão do garçom, um sauvignon blanc argentino.

Ele veste uma camisa cinza clara com as mangas arregaçadas e calças pretas. Os cabelos, entre castanhos e grisalhos, são curtos e ondulados. Os olhos, castanhos.

Laurent tem sido um observador da cena política nacional, mas já não sabe dizer se você é de direita ou de esquerda.

"Cheguei à conclusão de que não sou nem de um lado nem de outro. O que me aborrece é a mentira. Seja de qual lado for. O que precisamos é redefinir a administração pública, o que não depende de mim, de você, nem de nenhum empresário. Os privilégios dos servidores do Estado, achando que estão acima do bem e do mal... Isso acabou. Não há mais saída para esse modelo. O mundo mudou. O grande Estado protetor não existe mais. É preciso olhar para o empreendedor como aquele que faz, em vez de olhar para ele como um bandido. Fico muito tranquilo de falar isso porque nasci num país onde o Estado é extremamente paternalista. Um dos últimos países a fazer as reformas necessárias", afirma.

O fato de existirem funcionários públicos com emprego garantido o deixa perplexo. "Não consigo entender. Eu nunca tive [nada garantido]. Se você está à serviço da comunidade, por que ter um lugar garantido? A sua segurança deve ser resultado da sua competência. Mas tem que haver um sistema para isso, que não é o caso hoje. O sistema ideal está para ser inventado."

O que sou hoje? Um cidadão do mundo. Acho que se estivesse nos Estados Unidos ou no Canadá, a minha forma de trabalho seria a mesma

À medida que a conversa avança, ele declara seu apreço pela monarquia. "Acredito muito na monarquia parlamentarista. Quando você nasce dentro do poder, não precisa dizer que é poder, você de fato é. E sua postura é fazer tudo para que a sua comunidade se sinta melhor."

O garçom se aproxima com dois pratos de massa nas mãos.

- A gente não ia comer peixe?

- Pedi para o Paulinho mandar duas massinhas antes.

Trata-se de um ravióli de mascarpone com ragu de berinjelas ao pesto de rúcula e creme de tomate.

"Bom apetite", diz. Quando a entrevista foi marcada, por telefone, Laurent hesitou ao escolher o restaurante. Agora explica que sai muito pouco para jantar fora, no máximo quatro a cinco vezes por ano. É por falta de tempo. Além disso, gosta muito de ficar em casa. Lê, assiste a certos programas de televisão e ouve música.

Atualmente, está lendo um livro sobre Napoleão Bonaparte - "Sobre a Guerra: A Arte da Batalha e da Estratégia", de Bruno Colson. Gosta de ler sobre história, economia e "management". E, óbvio, livros de cozinha. Mas antigos. "Ganho muitos livros de cozinha atuais e, sinceramente, não abro. Não me sinto atraído." Entre os que adora, cita "Éloges de la Cuisine Française", de Édouard Nignon, que foi chef de Nicolau II, o último czar. "Ele conta como foi sua experiência de ter servido a monarquia russa. Aborda o momento histórico, de 1915/16, antes da Revolução Bolchevique."

Às vezes, quando se pergunta por que tem tanto interesse em história, chega à conclusão de que é por causa de sua conexão com a cozinha. Considera seu métier parte da evolução social. "A cozinha está sempre ali representada. Grandes decisões foram tomadas em volta da mesa. E o chef, que está por trás disso, participa de um momento que se tornará histórico."

"Self-made man", de certa forma, acha que o diploma "é um papel" e o que vale é a competência. "Seja você um cientista ou um varredor de rua." É por isso que não quis cursar a faculdade de hotelaria e administração em Estrasburgo, na França, quando teve oportunidade. "Hoje eu seria um mero administrador de hotel. Não teria o brilho nos olhos que tenho pelo prazer do que faço no dia a dia."

Escola de Arte Culinária: aperfeiçoamento de profissionais de gastronomia Créditos: Claudio Belli/Valor

Com Troisgos, Bocuse, Roger Vergé, Marlene Troisgros e diretor do Meridian Créditos: Arquivo pessoal

Laurent, em seu restaurante no Rio, que começou a funcionar em 1986 Créditos: Arquivo pessoal

Laurent Suaudeau e Bocuse no restaurante Paul Bocuse, em Lyon Créditos: Arquivo pessoal

 

Filho de um operário metalúrgico sindicalista, Laurent nasceu em Cholet, no Vale do Loire. Aos 4 anos brincava com panelas. E o tio ficava assustado. "Nunca perguntei pra eles se viam isso como uma coisa gay, mas acredito que sim. Você vê que esse preconceito ainda era forte na França, nos anos 60. Foi o mesmo que encontrei aqui nos anos 80. O cozinheiro era tido como um babaca analfabeto ou era gay."

Com a ajuda do pai, aos 13 anos conseguiu uma vaga como ajudante num restaurante próximo da cidade, do chef Yvon Garnier, "uma figuraça na hierarquia da cozinha", com quem fala até hoje. Por sugestão de Garnier foi cursar o Lycée Technique, em Guérande. Aos 20 anos já trabalhava no estrelado Collonges-au-Mont-d'Or, de Paul Bocuse, que o trouxe para o Brasil em 1979 para chefiar a cozinha do Le Saint-Honoré, no antigo hotel Le Méridien, em Copacabana.

Foi no Rio que Laurent ganhou destaque na gastronomia ao combinar pratos da clássica cozinha francesa com ingredientes brasileiros. Ali nasceu a mousseline de mandioquinha com caviar, que, simplificada como purê de mandioquinha, foi amplamente copiada e entrou para o repertório nacional.

O fato de ter nascido numa família operária marcou sua vida. A isso deve sua noção de companheirismo e respeito ao ofício. "Senti esses valores de forma muito forte com meu pai e todos os seus colegas, até o último dia da vida dele. Em determinado momento, não compartilhei a visão deles. Meu pai dizia: 'Vai servir teus bacanas e não me enche o saco'."

O pai extremamente qualificado e a mãe, também metalúrgica, lhe deram um padrão de vida de classe média operária. "A gente morava num pavilhão, meu pai tinha um carro. Passávamos as férias sempre no mesmo lugar, a 100 quilômetros." Natural que ele achasse que o mundo onde Laurent passou a viver era uma ilusão. Não via as horas de trabalho, em condições difíceis, que estavam por trás de um belo restaurante.

"Olha as pessoas que estão aqui hoje", diz, olhando ao redor. "Meu pai olhava só para o brilho, para a vitrine que é o salão. Como era um homem de esquerda, achava que eu estava a serviço daqueles que sempre combateu. A alta burguesia. E um dia me jogou na cara. Nunca o culpei por pensar isso, entendo. Para um homem que na vida, em casa, o suprassumo da comida era um bife com batatas fritas e salada, é normal."

O grande Estado protetor não existe mais. É preciso olhar para o empreendedor como aquele que faz, em vez de olhar para ele como um bandido

Ele se emociona e chega a ficar com os olhos marejados ao dizer que, aos 23 anos, quando foi nomeado chef do Saint-Honoré, recebendo a batuta de Bocuse, o pai se deu conta de que ele era um trabalhador. "Aí ele percebeu que, apesar de tudo o que o Bocuse podia representar na aura do mundo, era um ser humano profundo, que acreditava no ensinamento e no conhecimento como alavanca social e tinha um olhar para profissões manuais tão respeitoso como para as do intelecto."

Talvez tenha sido Bocuse o primeiro a intuir o dom de Laurent para o ensino. Na França, quando trabalhava com ele, o chef lhe encaminhava a maioria dos novatos. "Toma conta", dizia, quando chegavam estagiários paquistaneses, alemães, de qualquer parte. "Quando abri a escola, foi um sonho, não uma ambição. Foi um grande momento da vida. Sempre quis, um dia, ter uma escola e ser um educador."

Especialistas da área, como o sociólogo Carlos Alberto Dória, o consideram o maior professor de gastronomia do país. Na cozinha, junto a seus alunos, ele leva a missão como um sacerdócio. Atualmente, em parceria com a Nestlé Food Service, desenvolve um projeto no Instituto Laurent que beneficia pessoas de baixa renda. É uma iniciativa mundial, que visa selecionar jovens por meio de um processo de meritocracia. "Quando você dirige um trabalho para esse público, não é demagogia, não. Sou eu que estou ali ensinando, não vou deixar para outro. Levo isso muito a sério."

Novamente, aí está o DNA do pai. Laurent fala como se estivesse discursando: "Você tem que aproveitar o que Deus te ofereceu e compartilhar. Aí você percebe que o povo brasileiro tem uma carência muito grande. Ele quer acreditar no esforço, no conhecimento. Por isso, volto a dizer: invistam num sistema que permita o elevador social, mas que não seja preso a dogmas. Que não esteja subordinado a uma burocracia complicada e, muitas vezes, corrupta".

 
A cozinha, para Laurent Suaudeau, é uma disciplina do gesto, da postura e da cidadania.

 O peixe já está na mesa há um tempão. Começamos a comer para não ficar gelado. Laurent vira-se para o garçom e pergunta: "Você trabalhou comigo em que ano?" "De 96 até 2002." Falam do Joaquim, do Raimundo e do Tonhão. De famílias, restaurantes e parentescos. "No meu setor, quantos chefs competentes poderiam ter em suas cozinhas cinco ou seis aprendizes de uma forma muito mais leve do ponto de vista da legislação? Por que não é possível ensinar pessoas que não têm condições de ir pra faculdade? Quem ganha com isso?"

A cozinha, para ele, é uma disciplina do gesto, da postura e da cidadania. Um cozinheiro tem que assimilar todo o processo do ambiente que o envolve. Não pode desperdiçar alimento, espaço, energia, água. "O botânico Joseph Rock [1884-1962] dizia que um dia o mundo entenderia quanto esses cozinheiros tão mal amados são importantes como embaixadores numa sociedade mais justa."

- Chegamos a esse momento?

- Sim.

- E também à era dos cozinheiros pop stars.

- O pop star é um pouco complicado. Você leva o reconhecimento pelo lado do estrelismo. Não pelo que representa a profissão. Sou o primeiro a reconhecer que isso democratiza a cozinha em todos os lugares do mundo. O que me irrita é o excesso de ego. E nossa sociedade está muito contaminada por isso. Está construída em cima da fama imediatista. O sistema é podre.

- O que você acha dos "reality shows" de cozinha?

- São momentos. Tem um lado bom. Democratizar. Se a gente vivesse num sistema que mostra outra direção além dos 15 minutos de fama, tudo mudaria. Mas neste mundo em que é preciso atingir os objetivos o mais rápido possível, esses programas vão continuar. Porque dão dinheiro. Eu prefiro acreditar que tudo isso é transitório. Sei que tem gente que não vai gostar disso que digo, mas não estou nem aí. Tenho um defeito: falo abertamente o que penso. Isso é visto como defeito, mas acho uma qualidade. No mundo faltam pessoas que sejam um pouco mais sinceras. A hipocrisia predomina.

Entre os movimentos culinários que lhe interessam, cita o peruano. Mas não é pessoa para pegar um avião e ir aonde quer que seja fazer um tour gastronômico. Se amanhã tiver a possibilidade de ir à Noruega, tentará ver o que está se fazendo lá, de uma forma ampla. O que não quer dizer conhecer restaurantes que estão nas listas dos melhores. "Acho que essas listas vão acabar. Geram inimizade e a cozinha deveria representar uma grande família."

Quanto à vaidade e à presunção, reconhece já ter passado por isso. "Tive um momento em que eu 'me achava'. Mas tem a ver com o metabolismo. Você é um cara de 30 e poucos anos, está com tudo. Faz parte da vida. O bom é estar consciente disso. Acho que me salvei porque nunca me envolvi com esse lado muito 'society', com essas besteiradas todas. Com essa vida paetê. Talvez isso tenha me protegido para eu sempre me olhar no espelho e dizer: cuidado cara, não é por aí. Você nunca chega ao topo."

De sobremesa pedimos "tiramisù", por sugestão dele. "O Paulinho pediu pra eu provar", diz. Dá duas colheradas, comenta que está muito bom - de fato está - e para. Dieta? "Não, apenas me cuido. Faço ginástica e fico ligado para não exagerar."

- Na cozinha, pelo menos, o Brasil está melhorando, não?

- Não há a menor dúvida. E não tem retrocesso. Brinquei uma vez dizendo: "Cuidado, neste país a cozinha será o embrião de uma revolução pra valer!"

- Como no Peru? Você acredita nisso?

- Completamente. Por meio da cozinha você desenvolve muita coisa. Recentemente, quando fui a João Pessoa, vi o trabalho que os chefs fazem com os produtores. As pessoas que ficam no campo, com a família, moram numa casa simples, mas com uma horta verde, bonita, que dá dinheiro para se manter. Está na cara que, se há uma melhor produção de alimentos focada em empresas médias e pequenas, haverá maior qualidade em todo o país. Seja no Norte, Sul ou Nordeste. Essa é grande mudança que está vindo. Mas, por enquanto, essa valorização do pequeno e médio produtor ainda representa 5% do que poderá ser.

Além das palestras, das consultorias, dos jantares corporativos que prepara, o que mais o diverte é ouvir música. Bem alto, entre quatro paredes. "Ah, isso eu adoro. Sou um 'rocker'. Gosto de todos os grandes: Led Zeppelin, Neil Young, Fleetwood Mac, Phil Collins, Deep Purple, Peter Gabriel, acho genial."

- Beatles?

- Não muito. Sempre fui mais Rolling Stones. Muito água com açúcar pra mim, os Beatles. Eu gostava das coisas um pouco mais agressivas. Sempre gostei muito de tudo o que tem uma relação com protesto. O Bocuse falou que eu era rebelde. De fato. Sempre tive esse lado muito rebelde, antiestablisment.

- Mas você é monarquista.

- Justamente. Quando há um certo conservadorismo, há sempre espaço para o contrário. O pior é quando você tem uma coisa mole, como aqui, em que nada se mexe.

Já passa das 16 horas quando pedimos a conta. Ao se despedir, ele aponta para o teto e fica atento. Está tocando "Do Ya Think I'm Sexy?". "Eu dançava essa música quando tinha 20 anos. Rod Stewart, 1978."